Ensino superior para os povos indígenas

Em setembro de 2020, uma matéria que fez parte da revista digital em homenagem aos 52 anos da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (Uern) trouxe o depoimento da estudante Gabriela Cinthia de Oliveira Paiva, primeira aluna da Uern aprovada na cota destinada a indígena. Esse material também contou com análise de estudiosos e abordou o acesso e a permanência de índios na universidade, bem como a Lei de Cotas Étnicos-Raciais na Uern. Segue o texto:

Neta de uma liderança indígena, Gabriela Cínthia foi aprovada no SiSU/Uern 2020, no curso de Direito. Natural de Natal e residente em Apodi, Gabriela falou com orgulho sobre sua ancestralidade.

A neta da cacique Lúcia Paiacu Tabajara será a primeira bacharel em Direito da Aldeia Tapuia Paiacu. “Sempre tive a intenção de atuar na área da saúde, mas após ingressar no IFRN e tomar conhecimento de tantas outras questões que até então não tinha, depois de conhecer a autora Djamila Ribeiro e seu posicionamento quanto à questão da negritude, participar de debates sociopolíticos e afins, eu percebi o quão delicados são assuntos assim para os indígenas”, afirmou Gabriela, acrescentando que há poucos estudos e suportes burocráticos para os indígenas, mesmo que estejam assegurados constitucionalmente.

 

Gabriela Cinthia foi a primeira aluna da Uern aprovada na cota para indígena

“Acompanhei mais de perto o movimento que minha avó lidera e isso despertou em mim uma indignação com tanta injustiça que o nosso povo vive. Na minha ótica, Direito é uma forma de trazer à aldeia conhecimentos burocráticos e assegurar a ciência dos direitos indígenas”, afirmou a estudante.

Gabriela conta que em 2006, sua avó Lúcia Tavares iniciou um trabalho de pesquisa sobre a ancestralidade apodiense. Resgatando a história de luta e resistência de seu povo, Lúcia fundou o Centro Histórico Cultural Tapuia Paiacu da Lagoa do Apodi (CHCTPLA) e o Museu do Índio Luiza Cantofa, os dois em 2013, ambos reconhecidos pela Fundação Nacional do Índio – Funai. Em 2019, a líder indígena conseguiu parecer do Ministério Público para inserir o nome de sua etnia em seu registro, alterando o documento para Lúcia Paiacu Tabajara. A luta da avó e as raízes de seu povo são motivos de orgulho para a neta, que pretende atuar na defesa dos direitos dos povos indígenas.

O acesso e a permanência de índios na universidade, além de outras pautas identitárias, como a educação indígena, ainda são demandas que carecem de mais políticas públicas, investimento e ações concretas. O cacique da Aldeia Santa Terezinha, Dioclécio Mendonça, levanta essa bandeira e atua na defesa dos direitos e acesso à educação dos povos indígenas.

Dioclécio Mendonça, da comunidade Amarelão, cursa mestrado na UFRN

Dioclécio Mendonça é aluno do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – PPGAS/UFRN. Sua trajetória escolar é marcada por muita força de vontade, semelhante ao significado do seu nome indígena – Y Membýra, que significa força das águas. As raízes de Dioclécio estão no maior território indígena do RN. Ele nasceu e mora na comunidade Santa Terezinha, pertencente ao grupo familiar dos Mendonça. O Território dos Mendonça é composto por seis comunidades indígenas: Amarelão, Serrote de São Bento, Cachoeiras, Marajó, Açucena e Santa Terezinha. “Não frequentei a creche porque meus pais achavam que não era necessário. Sou filho de agricultores, meus pais não sabem ler e nem escrever. Aos 6 anos fui para a escola da aldeia e a partir do 5º ano fui estudar numa escola de João Câmara. Depois fui morar em Natal, porque queria terminar o Ensino Médio. Fiz vestibular e passei pro curso de Pedagogia, do Instituto de Ensino Superior e Múltiplo – IESM”, conta Dioclécio.

Sentindo a necessidade de continuar os estudos, ele fez uma especialização em Psicopedagogia clínica. Em 2019, passou em terceiro lugar no mestrado em Antropologia da UFRN, entrou pelo sistema de cotas para indígenas e conquistou uma bolsa. Dioclécio argumenta que há um despreparo das instituições e é necessário avançar nas questões da visibilidade e da permanência dos indígenas nesses espaços universitários. “O sistema consiste em inserir o indígena nesses espaços, mas é preciso políticas públicas de subsistência. Não é fácil se manter, muitas vezes o aluno indígena mora na zona rural. A escola e a universidade foram feitas para brancos”, comenta.

Além da experiência na academia, Dioclécio fala com orgulho sobre o trabalho comunitário e sua experiência como professor. Ele trabalhou como professor na escola da comunidade do Serrote, posteriormente foi coordenador de uma ação de formação continuada para professores indígenas. Em 2019 foi convidado para ser coordenador pedagógico do Fundamental II, da Educação de Jovens e Adultos – EJA, da Escola Indígena Alice Soares. Nesse mesmo ano foi aprovado em outros dois processos seletivos, um deles para trabalhar na primeira escola indígena do estado – Escola Francisco Silva do Nascimento.

Aos 22 anos, ele assumiu o cargo de Cacique, indicado pelos anciãos de sua aldeia. É coordenador da Associação Comunitária dos Povos Mendonça e atua na coordenação de Jovens Indígenas da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo – APOINME. Incansável, ele afirma que vai continuar lutando por mais políticas públicas para os indígenas.

Implantação das cotas étnico-raciais na Uern

A professora Dra. Eliane Anselmo da Silva preside a Comissão de Heteroidentificação da Uern

Em 31 de janeiro de 2019 o Diário Oficial do Estado do RN (DOE) trouxe a publicação da Lei Nº 10.480/2019, sancionada pela governadora Fátima Bezerra. A lei instituiu as cotas étnico-raciais no sistema de cota social da Uern e o Argumento de Inclusão Regional, que estabeleceu um percentual a mais para quem estudou no Rio Grande do Norte.

A professora Eliane Anselmo da Silva, doutora em Antropologia e coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros – Neab/Uern, preside a Comissão de Heteroidentificação da Uern. Ela analisa que, ao adotar essas políticas de ação afirmativa, o Estado tenta promover uma justiça compensatória, reconhecendo os erros do passado, da chamada dívida histórica, numa espécie de redistribuição dos direitos. “É uma solução a longo prazo, visto que muitos ainda não têm acesso à universidade, porque precisam, para isso também, de uma educação básica de qualidade”, comenta a professora, que é lotada no Departamento de Ciências Sociais e Políticas.

O critério da cota racial está previsto desde 2012, por meio da Lei nº 12.711. “Dados do IBGE apontam que nos últimos anos, mais de 150 mil negros, índios e pardos ingressaram nas universidades públicas por cotas em todo o país. É um número muito pequeno, se pensarmos nos 56% da população total brasileira que se autodeclara negra ou parda, por exemplo. De todo modo, a criação das cotas raciais se mostra de grande importância. Mas é apenas um pequeno passo no que tem que ser feito no país para amenizar as desigualdades sociais enfrentadas historicamente pelos negros e pelas populações indígenas”, comentou Eliane.

O sistema de cotas da Uern visa equilibrar as desigualdades em relação ao ingresso no ensino superior, especialmente para a população que não teve acesso a boas oportunidades de estudo. Para ter direito às vagas destinadas aos indígenas, o candidato precisa apresentar uma declaração de etnia e vínculo com comunidade indígena.

Pesquisadora analisa a presença dos índios em espaços de conhecimento

Izaíra Lima pesquisa a temática do ciberativismo indígena

Estudiosa da temática ciberativismo indígena, a jornalista Izaíra Thalita da Silva Lima, que tem graduação em Jornalismo e Mestrado em Ciências Sociais e Humanas pela Uern, analisa o que representa as cotas para os povos indígenas. Segue o texto de Izaíra:

O antropólogo João Pacheco de Oliveira possui uma afirmação presente nas suas obras, que é a de que “sem os índios não se entende o Brasil. Nem no passado e nem o hoje”. No entanto, a sociedade brasileira tem negado e excluído as populações indígenas de muitos processos, não compreendendo que é possível reconhecer e garantir acesso às oportunidades, sem precisar destruir as diferenças que constituem estes povos.

As populações indígenas são vítimas históricas dos projetos de desenvolvimento e geopolíticos impetrados pelo Estado brasileiro. A agressividade dos projetos foi acompanhada do legalismo instituído pelos governos autoritários que, em nome da promoção do bem para a nação, chegaram a negar a existências de povos indígenas nas terras pleiteadas por seus projetos, a fim de viabilizar os avanços e a ‘modernização’ e ao não reconhecimento dos territórios nacionais.

No Nordeste, por muito tempo circulou o discurso que pretendia esse apagamento, dizendo que na nossa região, assim como no nosso estado do Rio Grande do Norte, não havia mais índios pois “eram misturados” (OLIVEIRA, 1998, p. 52). A negação da existência, da identidade e de sua valorização vinha acompanhada com a retirada de seus direitos, especialmente ao território tradicional.

Hoje, tanto a juventude indígena como muitas de suas lideranças compreendem que, entre as frentes de batalha na luta pelo território tradicional, pelo respeito às tradições e cultura está em ‘jogar o jogo’ da sociedade não-indígena, cujas decisões em nível de Estado sempre os afetam, buscando a formação e acesso à educação em todos os seus níveis, para conscientizar, afirmarem suas identidades étnicas, existências e resistências e principalmente, para que com a formação necessária, possam voltar às aldeias e reforçar as lutas das suas comunidades nas diversas frentes.

As cotas para indígenas instituídas pela Uern se por um lado não reparam todo um histórico sofrido por essas populações, por outro surgem como avanço de reconhecimento das diversas etnias que aqui existiram e que conseguiram resistir, reafirmando sua presença, apesar das violências e desigualdades que operam sobre estas populações há séculos. Que sejam bem-vindos todos os povos a esta instituição de ensino que tanto já contribuiu para formação humana e para a transformação de vidas.