“A vida nas ruas não é fácil. Olhar para ela, aproximar o afeto e fortalecer o SUS faz parte da nossa responsabilidade social enquanto instituição formadora”. A fala da professora Andrea Taborda define bem o que um projeto da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) vem realizando com pessoas em situação de rua, oferecendo atendimentos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em parceria com o Consultório de Rua.
Além de ampliar o cuidado e o olhar a esta população mais vulnerável, o trabalho de professores e estudantes da Uern e da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA) faz com que a vida e a saúde dessas pessoas passe da invisibilidade para uma pauta mais efetiva de políticas públicas.
“Associar isso ao ensino e à formação dos profissionais de saúde é de suma importância para que os profissionais criem competências e consciência crítica para que não se reproduzam práticas de segregação ou preconceito. O retorno, acolhimento e afeto que são retornados são um grande exemplo de que devemos mudar nossas práticas de cuidado para os alunos e profissionais em formação”, defende a coordenadora.
Para a docente, trazer o SUS como ordenador da formação das profissões de saúde também se torna ponto principal na pauta, caso contrário não haveria este olhar a partir das demandas e necessidades de saúde de populações vulnerabilizadas.
Os atendimentos são realizados quinzenalmente, às quartas-feiras, com serviços interprofissionais e intersetoriais de saúde, na Faculdade de Enfermagem (FAEN), localizada à Rua Desembargador Dionísio Figueira, 383, no Centro de Mossoró.
O trabalho acontece em parceria com o Consultório de Rua, iniciativa realizada desde 2016 pela Prefeitura de Mossoró.
Aparecida Sousa, coordenadora do projeto municipal, explica que os atendimentos acontecem de segunda a sexta-feira nas ruas e praças da cidade. A partir daí os pacientes são encaminhados à FAEN.
“Eles são atendidos pelos residentes, são solicitados exames, nós marcamos esses exames e eles voltam para mostrar, serem medicados. Em casos mais graves, eles são encaminhados para as UPA’s ou passam por um atendimento com médico especializado. A Uern tem nos ajudado bastante”, detalhou.
Cerca de 450 pessoas já foram beneficiadas, a maioria são homens, vindos do interior do RN e de outros estados para as ruas da segunda maior cidade potiguar. Com a pandemia, o número de vulneráveis cresceu.
Em parceria com os cursos de Medicina da cidade, o projeto da Uern está realizando um mapeamento dos moradores em situação de rua cadastrados no município. “O perfil desta população é heterogêneo e precisamos terminar o mapeamento para entendermos suas necessidades em saúde para construir projetos a longo prazo para a assistência”, explicou Andrea Taborda.
Condições presentes
As doenças crônicas não transmissíveis, como diabetes e hipertensão, doenças infeciosas e parasitárias – muitas vezes relacionadas às condições de vida na rua, com falta de acesso à água potável e local adequado para higiene e a lavagem de roupas –, o uso ou abuso de substâncias e transtornos mentais são algumas das queixas mais comuns das pessoas que procuram os atendimentos.
“O que fica claro é que a vida na rua dificulta o acesso aos serviços de saúde e estabelecimento de vínculo, bem como o acesso a programas de renda etc. Por isso a necessidade de um trabalho a muitas mãos e interprofissional e intersetorial para construir maior qualidade do cuidado para a população em situação de rua”, argumenta a professora.
O olhar humano
Antônio Gomes de Oliveira enfrentou a Covid-19 nas ruas. O homem de 45 anos chegou a ser intubado no Hospital São Luiz e quando teve alta não tinha para onde ir. Ele acabou retornando para o abrigo provisório que a Prefeitura mantém e lá recebe o acompanhamento dos residentes. “Agora só saio daqui quando fechar”, afirmou.
Sebastião Pereira, de 37 anos, passou oito meses no abrigo, saiu, mas retornou. “Sofri muito na rua. Quando voltei estava destruído e o pessoal do Consultório de Rua e da Universidade me ajudou”, comentou.
Histórias como essas surpreendem os residentes, que garantem crescer pessoal e profissionalmente com as experiências diárias, como é o caso de Josevaldo Leite, psicólogo residente e aluno de pós-graduação.
“Cresci enquanto pessoa e profissional, desconstruindo alguns conceitos. Trago como experiência, como aprendizado, que essas pessoas precisam ser vistas, precisam de assistência e de uma assistência de qualidade. Já vi muitas pessoas que têm histórias e potencialidades que precisam ser vistas, com dons, habilidades”, destacou.
A fisioterapeuta Elizandra Pinheiro, também estudante de pós-graduação, comenta que quando se pensa em assistência, se pensa em ampliar o olhar a todas as pessoas. Para ela, muitas vezes ações como essa são encaradas como benfeitorias, como fazer o bem sem olhar a quem, mas que na verdade se trata de direitos. Ela lembra que existe uma legislação própria para a assistência dessas pessoas garantindo que também tenham acesso à saúde, boas condições de moradia etc.
Sobre a experiência no projeto e na sua formação, Elizandra diz que “a gente tem a felicidade de aprender o fazer profissional com várias interfaces, com vários olhares, e aí a gente aprende muito com os outros colegas, numa perspectiva multiprofissional. Essa vivência tem sido de ampliar o olhar, entender que o profissional tem muito a contribuir com o ser humano, na perspectiva de saúde pública”.