O dia na faculdade transcorre como outro qualquer, marcado por restrições que já se tornaram corriqueiras. Chegar à sala antes da aula começar, mas não interagir com os colegas por falar uma língua diferente. Acumular dúvidas durante a aula, mas não poder expressá-las ao professor. Não saber quando chegou a hora do intervalo por não ouvir o sinal sonoro. Ir à lanchonete da universidade e ter dificuldade para fazer algum pedido ou mesmo saber o preço dos itens à venda.
Longe de representar um caso isolado, esse conjunto de barreiras e restrições ilustra os desafios enfrentados diariamente por milhares de surdos em diversas unidades de ensino básico e superior no país, os quais carecem de ações que vão muito além da presença de intérpretes nas salas de aula.
Possibilitando pela primeira vez a realização de vídeo-prova em Libras e trazendo como tema da redação “desafios para a formação educacional de surdos”, a edição deste ano do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) trouxe o tema à tona na última semana e fomentou uma série de discussões a respeito de ações inclusivas voltadas aos deficientes auditivos.
“Esse tema foi para mim uma explosão de alegria, porque a luta pela escolaridade dos surdos vem se arrastando durante muitos anos no Brasil, mas as discussões eram sempre esquecidas diante da sociedade”, comenta o pedagogo Acaci Viana, que tem surdez profunda.
Graduado em Pedagogia e mestre em Educação pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), Acaci destaca que tem como um dos maiores objetivos na profissão ajudar outros surdos a perceber que também são capazes de superar os obstáculos ligados à educação.
Diante dos obstáculos, que têm início antes mesmo do ingresso na instituição de ensino, todavia, a tarefa não é fácil. “Entrar em uma universidade pública, por meio de um vestibular ou Enem, é muito difícil para a pessoa com surdez”, frisa o mestrando em Educação pela UERN Amon Paiva.
Graduado em Letras-Libras e em Educação Física, Amon conta que uma das maiores dificuldades que enfrentou para chegar à universidade foi a prova de redação, já que a correção dos textos feitos pelos surdos não era feita levando em consideração suas especificidades.
“Ao entrar na graduação, tive muitas dificuldades, especialmente por ser surdo oralizado. Por falar português na modalidade oral, as pessoas pensavam que eu conseguia acessar tudo, como as aulas, por exemplo. Sem intérprete e sem nenhum tipo de acessibilidade, adaptação das aulas, das avaliações, tudo foi bem difícil”, relata.
As barreiras só se tornaram menores, acrescenta Amon, durante a pós-graduação, na qual pôde ingressar através das vagas destinadas a pessoas com deficiência. “Ter direito à correção da minha prova por uma equipe que de fato conhecia a especificidade da minha escrita, passar por entrevista contando com intérprete de Libras e poder assistir às aulas com professores que reconhecem a minha diferença, além de uma equipe de apoio na instituição, me ajuda demais”, destaca.
Segundo Amon, um dos possíveis avanços que podem ser adotados pelas instituições de ensino superior é a aceitação do português como segunda língua no exame de proficiência dos surdos. “Os programas aceitam apenas o inglês, o espanhol e, às vezes, o francês. Mas por que não aceitar o português como segunda língua para o surdo? Atestar proficiência em português para nós, mestrando surdos, é muito mais importante que pra qualquer outra língua”, ilustra.
Diferencial
Para o estudante, um elemento fundamental para a redução dos obstáculos na pós-graduação é atuação da Diretoria de Políticas e Ações Inclusivas (DAIN) da UERN, que acompanha diretamente os alunos com deficiências ou necessidades especiais, entre os quais estão os 23 alunos com deficiência auditiva que estudam na universidade. “Isso faz toda a diferença. É um trabalho que de fato possibilita a inclusão no ensino superior”, comenta.
“Hoje, a UERN é referência no Estado, no Nordeste e nacionalmente em relação à inclusão”, salienta a diretora da DAIN, Ana Lúcia Aguiar. Entre as principais ações da diretoria voltadas aos surdos, Ana Lúcia cita os cursos de formação continuada em Libras, a participação de alunos surdos no Projeto Institucional de Iniciação Científica (PIBIC) e no Projeto de Iniciação Tecnológica (PIBIT), a presença de intérpretes nas salas de aula com alunos surdos e a atuação da Divisão de Deficiência Auditiva da universidade.
A diretora também ressalta que, desde 2013, 5% das vagas oferecidas nos cursos de graduação oferecidos pela UERN são destinadas a candidatos com deficiência ou necessidades especiais. Essa percentual, acrescenta, hoje se estende também aos cursos de pós-graduação e extensão.
Ana Lúcia salienta ainda que a universidade tem avançado consideravelmente no atendimento às pessoas com deficiência nos últimos anos e permanece buscando ampliar as ações de inclusão, sobretudo através da qualificação profissional do corpo docente, da quebra de barreiras atitudinais na comunidade acadêmica e do incentivo à formação continuada.
Evolução
Primeiro surdo a concluir a graduação em uma instituição de ensino superior pública no Rio Grande do Norte, Wagner Alves da Silva Queiroz aponta a presença dos intérpretes na sala como um passo fundamental para o melhor aproveitamento do curso. O pedagogo conta que, ao entrar na graduação, em 2008, na UERN, uma das maiores dificuldades era compreender o conteúdo passado pelo professor e a leitura dos livros.
“De manhã eu ia pra aula e, à tarde, ia para a DAIN e recebia apoio pedagógico. Assim eu conseguia fazer as atividades. Mas melhorou muito quando a gente passou a ter um intérprete (no quarto período)”, conta Wagner, cuja monografia teve como tema “O estágio supervisionado: contribuições da experiência de um aluno surdo”. Para ele, as ações de inclusão que foram desenvolvidas nos últimos anos também tiveram efeito na redução do preconceito por parte dos outros alunos.
Contemporâneo de Wagner no curso de Pedagogia, Luziano Barreto ressalta que mais um avanço da UERN, em relação a outras universidades, é o fato de a instituição publicar editais em Libras, o que torna as possibilidades de acesso mais justas desde o início do processo.
Após a repercussão do tema da redação do Enem, Barreto diz torcer para que a formação educacional dos surdos seja mais debatida, possibilitando a adoção de novas ações. “As pessoas ainda são leigas sobre esse assunto, principalmente fora das universidades”, comenta.